19.3.11

Bicicletas e Planejamento em Porto Alegre / Bicycles and Planning in Porto Alegre

O recente atropelamento de bicicletas na Cidade Baixa, em Porto Alegre, iniciou uma guerra de ideias no tema do transporte cicloviário. Sendo assim, achei oportuno fazer uma postagem avaliando tecnicamente o uso da bicicleta como meio de sistema de transporte em Porto Alegre, para que os participantes no debate atual tenham mais informações a respeito do tema.

A bicicleta nunca foi o meio de transporte urbano predominante, com algumas exceções como Shanghai (que recentemente baniu o uso da bicicleta em muitas vias), já que a sua invenção coincide com a do automóvel. O espírito modernista/desenvolvimentista que o seguiu em termos urbanísticos influenciou governos e prefeituras do mundo inteiro a tornar as cidades orientadas para o carro. Em Porto Alegre isso se manifestou não só construindo estradas, mas criando políticas anti-densidade como zoneamento e a limitação de alturas (principalmente a partir do Plano Diretor de 1959), abrindo perimetrais e construindo viadutos de forma autoritária. O governo Thompson Flores (1969-75) marcou esta última fase de construção, com o viaduto Loureiro da Silva (sobre a Av. Salgado Filho), o viaduto Dom Pedro I (sobre a II Perimetral), o viaduto Tiradentes (rua sobre a Protásio Alves), o viaduto Açorianos (sobre a I Perimetral), o viaduto do Obirici (sobre a Av. Plínio Brasil Milano) e, deixando o maior pro final, o túnel e o viaduto da Conceição.

Os principais benefícios trazidos pelo transporte cicloviário que foram perdidos com essas políticas foram o espaço – bicicletas ocupam pouquíssimo espaço por usuário – a não emissão de poluentes e, obviamente, o preço: bicicletas são muito mais acessíveis do que carros. A bicicleta hoje está cada vez mais ganhando espaço em cidades do mundo inteiro, e vários grupos tentam estimular essa ideia em Porto Alegre, como é o caso do Massa Crítica, a vítima do atropelamento do mês passado.

Então quais seriam os requisitos para a implementação de um sistema cicloviário? Como qualquer sistema de transporte, as vias precisam estar interligados em rede. Não adianta fazer uma faixa isolada para bicicletas, pois ela acabará se tornando para uso recreativo (ou nem isso), ao exemplo do extinto Caminho dos Parques em Porto Alegre. Ninguém tiraria a bicicleta de casa para andar metade do seu percurso a pé. Pelo o que se pode ver com o atual Plano Cicloviário criado pela Prefeitura Municipal, não me parece que este problema está sendo solucionado e, para isso, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) da cidade encontrará um enorme desafio para resolver: o terreno acidentado da cidade.

Todas as cidades que usamos como exemplo de sucesso em transporte cicliviário tem seus centros urbanos predominantemente planos. Em cidades serranas como Gramado, ou até mesmo em Belo Horizonte, a bicicleta nunca seria uma opção de transporte universal, já que seria impensável pessoas idosas subindo ladeiras íngrimes pedalando. Porto Alegre também tem esse problema, tornando inviável a implantação de um sistema cicloviário na cidade inteira. O estudo feito pela EPTC analisou as zonas de declividade acessíveis para toda a cidade, disponibilizada pelo blog Bikedrops neste arquivo. Porém, se analizarmos as zonas em escala mais aproximada podemos visualizar melhor as barreiras naturais criadas pelos morros da cidade. Através dos mapas disponibilizados pela Prefeitura, sinalizei todos os pontos onde a declividade seria alta demais para o trânsito de bicicletas, tanto na zona do Centro Histórico e quanto próximo ao “Novo Centro Geográfico” da cidade, no cruzamento entre a Av. Carlos Gomes e a Av. Nilo Peçanha, abrangendo também área no entorno da Av. Protásio Alves e da Av. Ipiranga, duas das avenidas mais importantes da cidade. Em ambas áreas o trânsito de bicicletas é complicado, praticamente inviabilizando-as para um sistema de transporte urbano cicloviário abrangendo a cidade inteira.


Outro empecilho é a questão da densidade populacional. Quanto maior a densidade populacional, mais próximas as atividades na cidade tendem a ser, facilitando o uso de um meio de transporte que expõe o usuário às intempéries e exige dele gasto de energia. Porto Alegre tem 2837 hab/km2, já cidades conhecidas tradicionalmente por seu uso de bicicleta são muito mais densas. Amsterdã tem 4457 hab/km2 na área urbana, Copenhagen tem 6113 hab/km2, e Barcelona e Paris, duas das primeiras metrópoles a implantarem um sistema de transporte público cicloviário, o Vélib e o Bicing, tem impressionantes 15991 hab/km2 e 20807 hab/km2 respectivamente.

Porto Alegre também teve seu desenvolvimento zoneado, ou seja, com usos residenciais, comerciais e industriais separados. Brasília foi planejada desta forma, mas com uma separação ainda mais rígida. Isso faz com que o uso do carro seja quase obrigatório, já que a distância que as pessoas têm que percorrer ao sair de casa para ir até um mercado, por exemplo, é muito maior.

Estes problemas para o uso da bicicleta em Porto Alegre fazem com que não tenha um número considerável de ciclistas para que eventualmente eles possam dividir espaço com os carros na rua de igual pra igual. Essa diferença de proporção influi muito no comportamento dos motoristas, que são acusados de não dar preferência aos ciclistas. Porém, não acredito que isso seja um problema cultural ou de comportamento local, mas inerente ao sistema que foi criado. Os motoristas se comportam de maneira muito diferente em áreas em que o automóvel não é predominante, como nas áreas na proximidade do Mercado Público, no Centro Histórico de Porto Alegre, onde a alta densidade permite um ambiente que favorece o pedestre. Iniciativas como a do Shared Spaces, onde não existe prioridade na via para pedestres, carros ou bicicletas, tirando a necessidade até da existência da calçada, também alteram o comportamento dos mototoristas. Sendo assim, acredito que se uma bicicleta trafegar em meio a uma via de alta velocidade onde 99% são carros, na prática acidentes são quase inevitáveis, independente da sociedade em discussão. Não devemos esperar um comportamento diferente daqueles incentivados pelo sistema, seja qual for a situação.

Minha conclusão é de que décadas de planejamento urbano voltado para o carro não podem ser corrigidos de um dia para o outro, mas dependem de mudanças não só no transporte viário como na regulamentação da construção civil. Eu adoraria que Porto Alegre fosse uma cidade onde tudo fosse mais próximo, e o pedestre e o ciclista fosse mais respeitado, mas infelizmente as coisas não evoluíram desta maneira. Talvez se o planejamento tivesse sido de baixo para cima, como sugerem Jacobs e Hayek, e não de cima para baixo, a cidade teria se tornado um lugar mais interessante de se morar, com uma evolução mais dinâmica e respeitando a diversidade no transporte.

*Dados segundo Wikipedia no dia desta postagem.

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The recent running over of bicycles in Porto Alegre started a huge debate on utility cycling. Being so, I thought it would be a good moment to make a technical analysis on using the bicycle as transportation in Porto Alegre, so that participants of the debate could have more information on the subject.

Bicycles were never the main urban transportation method with a few exceptions such as Shanghai (where bicycles were recently forbidden in many roads), as they were invented in the same period as the automobile. The modernist sprit that followd in urban terms influenced many governments and city halls around the world to make their cities car-oriented. In Porto Alegre this took place not only building highways, but creating anti-density regulation such as zoning and height limitations (mostly after the 1959 Master Plan), building elevated city roads and cutting city block with wide boulevards in a authoritarian manner. Mayer Thompson Flores (1969-75) marked this last building phase, building several elevated roads throughout the city.

The main benefits brought by cycling that were lost with there policies were space – bicycles occupy minimal space per user – non-emission of pollution and, obviously, their price: bicycles are much less expensive than cars. Today bicycles are gaining more and more space in cities around the world, such as Critical Mass, which was the victim to the Porto Alegre run over.

So what is needed to implement a utility cycling system? As any transportation system, the roads must be connected in a network. Isolated lanes are useless for bicycles, or else they will become only recreational, as the recently deactivated Caminho dos Parques in Porto Alegre. No one would get their bikes to travel half their trip walking. As we can see with the plan presented by the City Hall, it doesn’t seem like this problem is being solved, and for that the Transport and Circulation Public Company (EPTC) will find a huge challenge: the city’s hilly terrain.

All of the cities we use as an example of sucess in utility cycling have their urban centers predominantly flat. In mountain cities such as Gramado or even Belo Horizonte, bicycles would never be a universal means of transportation as it would be unthinkable to see elderly people cycling uphill. The EPTC analyzed the critical slope zone throughout the city, shown in this map. Nevertheless, if we look at each area in a larger scale we can see clearly the natural barriers created by the city’s hills. With other maps provided by the municipal planning office I could trace every strech of road that would not be bicycle friendly, in the Historical Center area and in the “New Geographical Center” area of the city, close to the crossing of Av. Nilo Peçanha and Av. Carlos Gomes, which also covers part of Av. Protásio Alves and Av. Ipiranga, two of the city’s most important boulevards. In both areas the terrain for bikes is complicated, turning a utility cycling system for the whole city practically impossible.

Another problem is population density. The denser a city is, closer activities tend to me, making it easier to use a means of transportation which exposes the user to weather and requires energy consumption from him. Porto Alegre has 2837/km2, while cities known traditionally for their bike usage are much more dense. Amsterdam has 4457/km2 inside the urban area, Copenhagen has 6113/km2 and Barcelona and Paris, two of the first metropolis to implement a utility cycling system, Vélib and Bicing, have impressive 15911/km2 and 20807/km2 respectively.

Porto Alegre also had a zoned development or, in other words, with separated residential, commercial and industrial uses. Brasilia was also planned in that manner, but with a even more rigid separation. This makes car usage almost mandatory, as distances travelled to go from your house to the market, for example, are much longer.

All of these problems make Porto Alegre’s cyclist numbers small so they can eventually share roads with cars in a strong position. This difference in proportion influences diver’s behavior, which are accused of not giving preference to cyclists. However, I don’t think this is a cultural or local behavior problem, but a inherent problem of the system that was created. Motorists behave differently in areas that automobiles are not predominant, such as in the proximities of the Public Market in the Historical Center of Porto Alegre, where pedestrian priority is respected. Initiatives such as Shared Spaces, where there is no priority for cars, bicycles or pedestrians, even eliminating sidewalks, also alter drivers behavior. Being so, I believe that if a cyclist goes along a high speed road where 99% of the traffic are cars, accidents are practically inevitable, no matter what society we are talking about. We should not expect a behavior different from those incentivized by the system, in any situation.

My conclusion is that decades of car-oriented urban planning cannot be corrected from one day to another, but depend on changes not only in the transportation system but on building regulation. I would love if Porto Alegre was a city where everything was closer, and pedestrians and cyclists had more priority, but unfortunately things didn’t turn out that way. Maybe if planning was made bottom-up, as Jacobs and Hayek suggest, and not top-down, the city would have become a more interesting place to live in, with a more dynamic evolution and more respect to diversity in transportation.

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